Luta dos grandes pela
concentração do poder é prenúncio do fim da competitividade desportiva em
Portugal
Emanuel Leite Jr.*
Em “Algumas propriedades dos
campos”, ao estudar espaços sociais diferentes, Pierre Bourdieu percebeu que
existem similaridades estruturais e funcionais entre estes espaços e que é
possível analisar um campo com base nos conhecimentos obtidos na análise de
outro. Em meu livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid
futebolístico e risco de espanholização”, recorro aos ensinamentos do pensador
francês para analisar o futebol e a questão das negociações dos direitos de transmissão
do campeonato brasileiro como campo especializado da vida moderna. Apreciação
que pode perfeitamente ser feita a qualquer “campo” e, portanto, sendo
aplicável também à Liga Portuguesa.
Na já referida obra de Bourdieu,
o sociólogo nos mostra que em um campo se encontram relações de poder. O que
implica dizer que há desigualdade e que dentro de cada campo existem lutas
entre aqueles que pretendem garantir sua participação e a classe dominante que
busca manter a ordem e sua supremacia. No futebol, também se verificam estas
lutas. Por um lado, os clubes que pretendem garantir a sua participação e, no
lado oposto, aqueles que pertencem a uma classe dominante e que procuram de
todo o modo manter o seu poder desportivo (através da obtenção de maiores recursos
financeiros).
No último domingo (27), apenas 25
dias depois de o Benfica ter anunciado como “o maior contrato da história do
desporto português” seu acordo com a NOS (que pode atingir 400 milhões de euros
em 10 anos), foi a vez de o Porto apresentar seu negócio com a PT. Em uma
disputa que leva para o campo dos negócios a rivalidade desportiva, os
portistas celebraram o que também fizeram questão de anunciar como o mais novo
“maior contrato da história do desporto português”: 457,5 milhões de euros.
O contrato de 400 milhões
benfiquista envolve dois ativos - os direitos de transmissão de seus jogos no
estádio da Luz e os da distribuição da Benfica TV. Enquanto os 457,5 milhões
portistas envolvem quatro ativos: direitos de transmissão de seus jogos no
Dragão, os da distribuição do Porto Canal, a exploração comercial do estádio e
o patrocinío master de sua camisola.
O Sporting, naturalmente, não
quer ficar para trás e já discute com a NOS e a PT os termos de seu acordo.
Ávidos para se mostrarem não apenas tão grandes quanto os dois rivais, mas
ainda maiores, os Leões devem oficializar em breve um contrato que, pelo que se
especula na comunicação social portuguesa, pode envolver ainda mais ativos. Sem
uma massa adepta tão grande quanto a do Benfica, nem o estrondoso sucesso
desportivo do Porto, a níveis nacional e internacional, nas últimas três
décadas, o sportinguistas poderiam ainda incluir nas negociações os naming
rights do estádio José de Alvalade, bem como do futuro Pavilhão João Rocha e
até mesmo da Academia.
Não restam dúvidas, portanto, que
se trata de clara concorrência alimentada pela rivalidade clubística e pela
necessidade de um se mostrar maior que o outro. O que evidencia como a teoria
dos campos de Bourdieu pode ser verificada no “campo” futebol. Quer dizer, nas
negociações dos direitos de transmissão televisiva em Portugal, os maiores
clubes se colocam acima dos menores clubes e, ao invés de buscarem uma
“cooperação social” através de uma “negociação mútua” (teoria da justiça, John
Rawls), estabelecem um modelo de negociação em que, potencialmente, saem
beneficiados, angariando muito mais recursos financeiros através das vendas dos
seus direitos de transmissão televisiva.
Ao tentar, profeticamente,
decretar “o fim da história”, Francis Fukuyama argumentou que não haveria
progresso sem desigualdade. Para ele, a desigualdade é funcional ao mercado
capitalista e também justa, pois a história progrediria através da luta pela
supremacia. Fukuyama, entretanto, esqueceu-se de uma premissa importante. Para
que se trave a luta pela superioridade, é preciso que os polos que se opõem
partam de condições mínimas de igualdade. Afinal, “antes de chegar a ponto de
lutar pela dominação, todo grupo social deve conquistar um certo nível de
paridade com os grupos rivais” (Norberto Bobbio).
O modelo adotado pelos grandes
clubes de Portugal - que, dentre os maiores campeonatos nacionais do mundo só
encontra paralelo no Campeonato Brasileiro, que vive uma realidade que defini
em meu livro como “apartheid futebolístico” - é injusto. As negociações
individuais, ao aprofundarem as desigualdades, são maléficas para a coletividade.
Enquanto o mundo caminha na
direção da adoção de modelos de negociações que busquem preservar a equidade
competitiva - com o objetivo de que a competição seja desportiva e não
financeira -, os grandes clubes portugueses contribuem para aprofundar ainda
mais o fosso intransponível que já os separa dos demais clubes do país. Aquilo
que Noam Chomsky alertou para o risco do poder concentrado dos “clubes dos
ricos”.
Em “Cotas de televisão do
campeonato brasileiro...”, argumento que é a negociação coletiva (“negociação
centralizada dos direitos televisivos”) que se aproxima mais do ideal de
“cooperação social” preconizado por John Rawls. Afinal, através da negociação
coletiva se pode obter um acordo em que haja “vantagem mútua” entre todos
envolvidos. Desde que a divisão dos recursos trate todos intervenientes de modo
equitativo, não permitindo “que alguns tenham mais trunfos do que outros na
negociação”.
Ao se falar em igualdade, não se
pode confundir com igualitarismo. Norberto Bobbio já nos ensinou que essa
confusão é fruto de "um insuficiente conhecimento do 'abc' da teoria da
igualdade". É como preconizou Aristóteles, “a igualdade consiste em tratar
os iguais igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade.”
Em “A ética protestante e o
espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o sistema
capitalista moderno está diretamente ligado ao avanço do racionalismo. Na
Alemanha de Weber, o futebol adota um modelo razoável de divisão dos recursos.
Ele se baseia no mérito desportivo, premiando com mais dinheiro aquele
que tem melhor prestação dentro de campo. Em Portugal, por outro lado, impera
uma lógica excludente e oligárquica, em que a classe dominante, beneficiada
pela concentração de poder, não demonstra intenção de garantir a efetiva
participação da classe dominada.
Na Premier League inglesa, os
valores obtidos pelas vendas para o mercado externo (£3 bilhões) são
distribuídos de forma 100% igualitária, já o montante auferido das negociações
para o mercado interno - £ 5,136 bilhões é o que a Sky Sports (£4.2 bilhões,
por 126 jogos ao vivo) e BTsports (£960 milhões, por 42 jogos ao vivo) vão
pagar a partir de 2016/17 -, são distribuídas de acordo com três critérios: 50%
divididos igualitariamente entre todos os clubes; 25% baseados na classificação
final da temporada anterior (o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que
recebe o último clube da lista); 25% variáveis de acordo com o número de jogos
transmitidos na televisão.
Este modelo permitiu, por
exemplo, que o Leicester, fenômeno na atual temporada e 14º colocado no último
campeonato, tenha encaixado £ 71,6 milhões, enquanto o campeão Chelsea – clube
que mais faturou com os direitos de transmissão – tenha recebido £ 99 milhões.
Último classificado em 2014/15, o Queens Park Rangers recebeu £ 64,9 milhões. A
diferença do campeão Chelsea para o QPR foi, então, de 1.53:1. Ou seja, bem
menos do que o dobro. Com estes novos contratos, de quanto será a diferença de
Porto, Benfica e Sporting para os demais 15 clubes da I Liga Portuguesa? Dez
vezes maior, ou até mais.
No dia 30 de abril de 2015, o
governo de Espanha anunciou o Real Decreto-ley 5/2015, que regulamenta a
negociação centralizada dos direitos televisivos. A distribuição passou a ser da
seguinte forma: 50% igualitariamente entre todos os clubes; 25% levando em
consideração os rendimentos desportivos nas últimas cinco temporadas; 25%
dividido em duas partes - um terço será determinado pela média de vendas de
bilhetes e lugares anuais nas últimas cinco temporadas e outros dois terços
correspondentes à participação de cada clube na geração de recursos na
comercialização dos direitos de transmissão.
Em 2014/15, o total das vendas
dos direitos de transmissão televisiva da liga espanhola somou 755 milhões de
euros. Sendo que Real Madrid e Barcelona faturaram, juntos, 37% (140 milhões
cada). O terceiro colocado neste ranking foi o Valencia, com 48 milhões de
euros, ou seja, três vezes menos do que a dupla.
Para 2016/17, La Liga já assegurou
1,6 bilhão de euros com a negociação centralizada. Ou seja, mais do que o dobro
do valor obtido com as vendas individuais. Real Madrid e Barcelona deverão
ganhar cerca de 150 milhões, enquanto o Atlético de Madrid vai passar de 42
para 110 milhões e o Valencia dos referidos 48 para 90 milhões. A diferença do
topo para o fundo da tabela, que era de 7,7:1 vai passar a ser apenas de 3:1.
Vale lembrar que ingleses,
alemães, espanhóis, franceses e italianos não distribuem o faturamento das
vendas dos direitos de transmissão televisiva de forma isonômica por bondade.
As ligas cumprem compromissos assumidos com a Comissão Europeia, que objetivava
o cumprimento do artigo 81 de seu Tratado (consolidado em sua versão de Nice),
que se preocupa, precisamente, com a preservação da livre concorrência.
Na opinião da Comissão Europeia,
as negociações coletivas tornam a “competição mais atrativa, uma vez que as
equipes competem em um contexto de maior igualdade de oportunidades” e
proporcionam “uma maior estabilidade financeira para as equipes de futebol,
devido a uma melhor redistribuição dos dividendos da televisão”.
A propósito, a visão da Comissão
Europeia se coaduna com os ensinamentos do Nobel da economia John Nash, que ao
desenvolver a teoria dos jogos, concluiu que a cooperação gera mais benefícios
à coletividade do que o individualismo. No caso da concentração de renda do
futebol, o individualismo (concentração dos recursos) ao prejudicar a igualdade
de condições entre os clubes que competem em um mesmo campeonato
(coletividade), empobrece, por conseguinte, o próprio campeonato, ao passo que
este se torna desnivelado tecnicamente, perdendo sua competitividade e
equilíbrio das disputas.
A disputa egoísta entre Porto,
Benfica e Sporting pela concentração do poder, portanto, ferem o espírito
desportivo em seu âmago. Isso porque enorme e injustificável desigualdade nas
receitas televisivas são o prenúncio do fim da competitividade desportiva. Uma
relação que se perfaz injusta. Afinal, devemos entender igualdade como justiça.
E, desde os gregos antigos, igualdade se confunde com democracia.
*Emanuel
Leite Jr. é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco
(Unicap) e formado em Jornalismo pelo Centro Universitário Maurício de Nassau
(Uninassau). Repórter do Superesportes do Diario de Pernambuco. Siga no Twitter
@EmanuelLeiteJr
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