terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Luta dos grandes pela concentração do poder é prenúncio do fim da competitividade desportiva em Portugal


Luta dos grandes pela concentração do poder é prenúncio do fim da competitividade desportiva em Portugal

Emanuel Leite Jr.*

Em “Algumas propriedades dos campos”, ao estudar espaços sociais diferentes, Pierre Bourdieu percebeu que existem similaridades estruturais e funcionais entre estes espaços e que é possível analisar um campo com base nos conhecimentos obtidos na análise de outro. Em meu livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”, recorro aos ensinamentos do pensador francês para analisar o futebol e a questão das negociações dos direitos de transmissão do campeonato brasileiro como campo especializado da vida moderna. Apreciação que pode perfeitamente ser feita a qualquer “campo” e, portanto, sendo aplicável também à Liga Portuguesa.

Na já referida obra de Bourdieu, o sociólogo nos mostra que em um campo se encontram relações de poder. O que implica dizer que há desigualdade e que dentro de cada campo existem lutas entre aqueles que pretendem garantir sua participação e a classe dominante que busca manter a ordem e sua supremacia. No futebol, também se verificam estas lutas. Por um lado, os clubes que pretendem garantir a sua participação e, no lado oposto, aqueles que pertencem a uma classe dominante e que procuram de todo o modo manter o seu poder desportivo (através da obtenção de maiores recursos financeiros).

No último domingo (27), apenas 25 dias depois de o Benfica ter anunciado como “o maior contrato da história do desporto português” seu acordo com a NOS (que pode atingir 400 milhões de euros em 10 anos), foi a vez de o Porto apresentar seu negócio com a PT. Em uma disputa que leva para o campo dos negócios a rivalidade desportiva, os portistas celebraram o que também fizeram questão de anunciar como o mais novo “maior contrato da história do desporto português”: 457,5 milhões de euros.

O contrato de 400 milhões benfiquista envolve dois ativos - os direitos de transmissão de seus jogos no estádio da Luz e os da distribuição da Benfica TV. Enquanto os 457,5 milhões portistas envolvem quatro ativos: direitos de transmissão de seus jogos no Dragão, os da distribuição do Porto Canal, a exploração comercial do estádio e o patrocinío master de sua camisola.

O Sporting, naturalmente, não quer ficar para trás e já discute com a NOS e a PT os termos de seu acordo. Ávidos para se mostrarem não apenas tão grandes quanto os dois rivais, mas ainda maiores, os Leões devem oficializar em breve um contrato que, pelo que se especula na comunicação social portuguesa, pode envolver ainda mais ativos. Sem uma massa adepta tão grande quanto a do Benfica, nem o estrondoso sucesso desportivo do Porto, a níveis nacional e internacional, nas últimas três décadas, o sportinguistas poderiam ainda incluir nas negociações os naming rights do estádio José de Alvalade, bem como do futuro Pavilhão João Rocha e até mesmo da Academia.

Não restam dúvidas, portanto, que se trata de clara concorrência alimentada pela rivalidade clubística e pela necessidade de um se mostrar maior que o outro. O que evidencia como a teoria dos campos de Bourdieu pode ser verificada no “campo” futebol. Quer dizer, nas negociações dos direitos de transmissão televisiva em Portugal, os maiores clubes se colocam acima dos menores clubes e, ao invés de buscarem uma “cooperação social” através de uma “negociação mútua” (teoria da justiça, John Rawls), estabelecem um modelo de negociação em que, potencialmente, saem beneficiados, angariando muito mais recursos financeiros através das vendas dos seus direitos de transmissão televisiva.

Ao tentar, profeticamente, decretar “o fim da história”, Francis Fukuyama argumentou que não haveria progresso sem desigualdade. Para ele, a desigualdade é funcional ao mercado capitalista e também justa, pois a história progrediria através da luta pela supremacia. Fukuyama, entretanto, esqueceu-se de uma premissa importante. Para que se trave a luta pela superioridade, é preciso que os polos que se opõem partam de condições mínimas de igualdade. Afinal, “antes de chegar a ponto de lutar pela dominação, todo grupo social deve conquistar um certo nível de paridade com os grupos rivais” (Norberto Bobbio).

O modelo adotado pelos grandes clubes de Portugal - que, dentre os maiores campeonatos nacionais do mundo só encontra paralelo no Campeonato Brasileiro, que vive uma realidade que defini em meu livro como “apartheid futebolístico” - é injusto. As negociações individuais, ao aprofundarem as desigualdades, são maléficas para a coletividade.

Enquanto o mundo caminha na direção da adoção de modelos de negociações que busquem preservar a equidade competitiva - com o objetivo de que a competição seja desportiva e não financeira -, os grandes clubes portugueses contribuem para aprofundar ainda mais o fosso intransponível que já os separa dos demais clubes do país. Aquilo que Noam Chomsky alertou para o risco do poder concentrado dos “clubes dos ricos”.

Em “Cotas de televisão do campeonato brasileiro...”, argumento que é a negociação coletiva (“negociação centralizada dos direitos televisivos”) que se aproxima mais do ideal de “cooperação social” preconizado por John Rawls. Afinal, através da negociação coletiva se pode obter um acordo em que haja “vantagem mútua” entre todos envolvidos. Desde que a divisão dos recursos trate todos intervenientes de modo equitativo, não permitindo “que alguns tenham mais trunfos do que outros na negociação”.

Ao se falar em igualdade, não se pode confundir com igualitarismo. Norberto Bobbio já nos ensinou que essa confusão é fruto de "um insuficiente conhecimento do 'abc' da teoria da igualdade". É como preconizou Aristóteles, “a igualdade consiste em tratar os iguais igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade.”

Em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o sistema capitalista moderno está diretamente ligado ao avanço do racionalismo. Na Alemanha de Weber, o futebol adota um modelo razoável de divisão dos recursos. Ele se baseia no mérito desportivo, premiando com mais dinheiro aquele que tem melhor prestação dentro de campo. Em Portugal, por outro lado, impera uma lógica excludente e oligárquica, em que a classe dominante, beneficiada pela concentração de poder, não demonstra intenção de garantir a efetiva participação da classe dominada.

Na Premier League inglesa, os valores obtidos pelas vendas para o mercado externo (£3 bilhões) são distribuídos de forma 100% igualitária, já o montante auferido das negociações para o mercado interno - £ 5,136 bilhões é o que a Sky Sports (£4.2 bilhões, por 126 jogos ao vivo) e BTsports (£960 milhões, por 42 jogos ao vivo) vão pagar a partir de 2016/17 -, são distribuídas de acordo com três critérios: 50% divididos igualitariamente entre todos os clubes; 25% baseados na classificação final da temporada anterior (o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que recebe o último clube da lista); 25% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão.

Este modelo permitiu, por exemplo, que o Leicester, fenômeno na atual temporada e 14º colocado no último campeonato, tenha encaixado £ 71,6 milhões, enquanto o campeão Chelsea – clube que mais faturou com os direitos de transmissão – tenha recebido £ 99 milhões. Último classificado em 2014/15, o Queens Park Rangers recebeu £ 64,9 milhões. A diferença do campeão Chelsea para o QPR foi, então, de 1.53:1. Ou seja, bem menos do que o dobro. Com estes novos contratos, de quanto será a diferença de Porto, Benfica e Sporting para os demais 15 clubes da I Liga Portuguesa? Dez vezes maior, ou até mais.

No dia 30 de abril de 2015, o governo de Espanha anunciou o Real Decreto-ley 5/2015, que regulamenta a negociação centralizada dos direitos televisivos. A distribuição passou a ser da seguinte forma: 50% igualitariamente entre todos os clubes; 25% levando em consideração os rendimentos desportivos nas últimas cinco temporadas; 25% dividido em duas partes - um terço será determinado pela média de vendas de bilhetes e lugares anuais nas últimas cinco temporadas e outros dois terços correspondentes à participação de cada clube na geração de recursos na comercialização dos direitos de transmissão.

Em 2014/15, o total das vendas dos direitos de transmissão televisiva da liga espanhola somou 755 milhões de euros. Sendo que Real Madrid e Barcelona faturaram, juntos, 37% (140 milhões cada). O terceiro colocado neste ranking foi o Valencia, com 48 milhões de euros, ou seja, três vezes menos do que a dupla.

Para 2016/17, La Liga já assegurou 1,6 bilhão de euros com a negociação centralizada. Ou seja, mais do que o dobro do valor obtido com as vendas individuais. Real Madrid e Barcelona deverão ganhar cerca de 150 milhões, enquanto o Atlético de Madrid vai passar de 42 para 110 milhões e o Valencia dos referidos 48 para 90 milhões. A diferença do topo para o fundo da tabela, que era de 7,7:1 vai passar a ser apenas de 3:1.

Vale lembrar que ingleses, alemães, espanhóis, franceses e italianos não distribuem o faturamento das vendas dos direitos de transmissão televisiva de forma isonômica por bondade. As ligas cumprem compromissos assumidos com a Comissão Europeia, que objetivava o cumprimento do artigo 81 de seu Tratado (consolidado em sua versão de Nice), que se preocupa, precisamente, com a preservação da livre concorrência.

Na opinião da Comissão Europeia, as negociações coletivas tornam a “competição mais atrativa, uma vez que as equipes competem em um contexto de maior igualdade de oportunidades” e proporcionam “uma maior estabilidade financeira para as equipes de futebol, devido a uma melhor redistribuição dos dividendos da televisão”.

A propósito, a visão da Comissão Europeia se coaduna com os ensinamentos do Nobel da economia John Nash, que ao desenvolver a teoria dos jogos, concluiu que a cooperação gera mais benefícios à coletividade do que o individualismo. No caso da concentração de renda do futebol, o individualismo (concentração dos recursos) ao prejudicar a igualdade de condições entre os clubes que competem em um mesmo campeonato (coletividade), empobrece, por conseguinte, o próprio campeonato, ao passo que este se torna desnivelado tecnicamente, perdendo sua competitividade e equilíbrio das disputas.

A disputa egoísta entre Porto, Benfica e Sporting pela concentração do poder, portanto, ferem o espírito desportivo em seu âmago. Isso porque enorme e injustificável desigualdade nas receitas televisivas são o prenúncio do fim da competitividade desportiva. Uma relação que se perfaz injusta. Afinal, devemos entender igualdade como justiça. E, desde os gregos antigos, igualdade se confunde com democracia.


*Emanuel Leite Jr. é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e formado em Jornalismo pelo Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau). Repórter do Superesportes do Diario de Pernambuco. Siga no Twitter @EmanuelLeiteJr 

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